Um par de botas

Lu Mastrorosa
4 min readSep 8, 2020

Fui internada na semana passada. Sintomas de infarto. Acharam que era angina. Pedi ajuda, logo eu, que detesto pedir ajuda. Pedi. Não conseguia respirar, doía tudo, o braço esquerdo, o ombro, o peito. Doía.

Minha filha, chateadíssima, entendendo pouco ou quase nada. Minha mãe, aflita, chegou de Uber, aquele processo todo, sem celular, sem carro, sem dirigir, sem direção, achando que a filha, a dela, no caso, eu, estava morrendo. Uma mãe de quase 80 anos tendo de lidar com a filha de 41, que acha que tem 14. Problemas.

Eu não estava morrendo, saberia depois. Mas achava que estava. De repente, no hospital, me deram pulseirinhas coloridas e pediram pra um “acompanhante” assinar papeis e me trazer coisas do tipo sabonete e, talvez, um pente. “A senhora tem alergia? A senhora é hipertensa? A senhora fuma?”. Isso aí. Alergia, hipertensão, tabagismo. Check, check, check. Bingo.

Olheiras do tamanho da Groenlândia. Coração apertadinho e, talvez, morrendinho. A culpa é do cigarro, esse vilão de novelas infantis. Não, moço, a culpa é minha. “Ela é tabagista. Não vamos liberar. Desculpe, senhora, mas vamos ter que mantê-la para mais exames.” Aquiesci.

Ele chegou com a roupa amassada e manchada, muito diferente da camisa bonita e do perfume do dia em que o conheci. Chegou e não quis me dar a mão. Eu pedi. Ele deu. Assinou minha internação. Ele, que nem meu marido é, nem nada meu, assinando minha internação. Pensei: “perdida por um, perdida por mil, vambora.”

Máquinas. Picadas e seringas por todo lado. Meus dois braços furados como peneiras. Sangue. Quase que me arrependi das vezes em que exagerei no vinho ou nos cigarros. Pensei, de novo: “ai, Luciana, precisava?”. Concluí: precisava.

Fui encaminhada para uma UTI. Logo eu, que nunca nem fora internada, nem sequer pro parto da minha filha. Parecia a madrugada dos mortos. Eu ouvindo, às três da manhã, olhão aberto, os centenários grunhindo coisas e pedindo atenção da enfermagem. Fiquei bem quietinha, como de hábito. Só olhando, observando.

Uma enfermeira de nome Luciana, como o meu, me alçou ao posto de “paciente mais linda e legal da UTI.” A concorrência tava fácil. Mesmo eu, com meus cabelos loiros desgrenhados e as olheiras alcançando o espaço, estava melhor na fita. Aceitei o posto. “O nosso nome é tão lindoooo”, ela dizia, e eu queria morrer, porque nem por um segundo achava meu nome bonito naquele momento. “Vamos tomar um banho? Quer?” Quero. E aí eu me esgueirei no banheiro comum e lavei os cabelos e parecia que era a primeira vez na vida que eu lavava os cabelos. Não tinha secador. Não me importei. Estava limpa.

Um rapaz (homem?) na maca ao lado parecia o meu amor. Cabelo curto, rente ao crânio. Eu o via passar, braços dados com a enfermeira, para ir ao banheiro ou fazer exames. Do outro lado da cortina, ouvia sua voz calma falar ao telefone com alguém, explicando coisas diversas. Pensei que devia ser libriano ou, sei lá, taurino, para se manter quieto e ausente mesmo quando a paciente da cortina ao lado dele, dona Vitalina, gritava por horas a fio: “ooooo, menina! oooooo, Carolina! ooooo, fulano! muda esta mesa de lugar, fulano!” Na centésima vez que ela gritou chamando alguém, eu pensei em levantar da cama na UTI e dar um sermão nela. “Aperta a porra do botão vermelho, dona Vitalina!!!” Mas, me contive. Disse pra enfermeira: “olha, meu coração tá joia, mas eu com certeza vou ter um infarto se ela continuar chamando vocês desse jeito.” Ela riu. Eu, não.

Agradeci a Deus por ser escritora e jornalista, jamais enfermeira. Eu não teria a MENOR paciência. Tem, mas acabou. Quando nasci.

De repente, tive alta. Meu coração, disseram eles, estava ótimo. “Pronto pra ser partido de novo”, pensei, mas não falei. Agradeci. Obrigada, doutor.

Pedi à minha mãe que me mandasse uma mochila, e não um saquinho de supermercado, como ela mandara antes, com meu sabonete de rosto aberto e vazando. Era o dia da minha alta. Eu precisava de alguma dignidade, debaixo daquela camisola azul clara de florzinhas débeis. Fiquei com vergonha do saquinho de supermercado que ela mandara dias antes. Logo eu, que tenho umas quinhentas ecobags, sacolas de pano, atrapalhando os caminhos da minha casa.

Ela trouxe uma mochila, sim. A mais velha. Com cheiro de xixi de gato. E eu me senti um ser humano fadado ao fracasso. Minha mochila de flamingos, que outrora me trouxera tantas alegrias, agora se via com meia dúzia de peças dentro e cheiro de xixi de gato. Pipoco, meu gato, eu te adotei, mas não foi pra isso.

Todo mundo me desejava melhoras: “fique bem”, “seus exames estão ótimos”, “fica tranquila”, “se cuida”. Patch de nicotina nas costas. Olheiras constantes, o corpinho débil um tanto inchado. Parti rumo ao sol. O Uber esperando lá fora, o dia, o dia todo ao meu alcance, eu queria dormir e chorar.

Mas, antes, olhei para baixo e vi meu par de botas velhas, que precisam muito de um trato e de uma graxa. Pensei no quanto amo essas botas e no dia em que as comprei.

No dia em que comprei essas botas marrons, eu ia visitar o Templo Zu Lai com uma amiga querida. Havia acabado de desfazer um casamento de 15 anos. Me apaixonei por essas botas, saí com elas calçadas nos meus pés, direto da loja. Joguei as anteriores no lixo. Nem lembro mais de como eram. “Preciso de botas novas”, pensei. Isso faz dois anos.

Hoje, acordei pensando que ia fazer o cabelo e as unhas, depois de tantos meses. As unhas pintadas de vermelho “red velvet”, que a manicure já até guarda pra mim. Nas mãos e nos pés.

Acordei pensando nele. Acordei pensando que preciso de botas novas. Ele se foi com o vento, como é próprio daqueles que nascem sob o elemento ar. Mamãe também já está na casa dela, amém. A filha chega amanhã, glória! Que saudade!

Esses dias, segui as ordens médicas e andei até cansar e suar todas as mágoas. Algumas continuam aqui, guardadinhas. Preciso caminhar mais.

E amanhã é quarta. A loja das botas é aqui perto. Se quiser caminhar com os próprios pés, que, ao menos, o calçado seja confortável. Preciso de um par de botas novas. Amanhã será.

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