Razões para cozinhar

Lu Mastrorosa
4 min readJul 30, 2020

Não tenho muito o costume de postar coisas com a #tbt, ou “Throwback Thursday”, ou seja, postar memórias de coisas felizes que ocorreram no passado.

Mas hoje eu fiz isso no meu Instagram. O Google me lembrou que, há um ano, eu preparava um ratatouille muito apetitoso e bonitão para um trabalho de gastronomia. Ratatouille é um prato comum na França, uma mistura de legumes.

Em geral, só escrevo a respeito de comida, mas às vezes, para minha alegria, sou convidada também a criar ou cozinhar receitas para fotos.

E esse ratatouille todo colorido, de uma época pré-pandemia, porém já de muita transformação aqui dentro, me fez lembrar por que eu gosto tanto de cozinhar.

Fiquei pensando que a cozinha é como a vida, mas num microcosmo. Você está lá, picando cebola, fatiando legumes, e tudo está indo bem. Até que, por um segundo, você se distrai e tira uma lasca do dedo: opa! Segura a lágrima, estanca o sangue, dá aquela tonteira, joga água no corte e avalia o estrago. O corte foi superficial? Foi. Então beleza, segue o baile, bota um curativo e vai, continua a preparar o jantar, vai dar tudo certo.

Outras vezes, você está preparando um lindo assado, tudo certo, crosta dourada, umidade impecável e, pá, vai tirar o dito do forno e queima a mão, dá até para ouvir o shhhh da sua mão tostada.

Enfia a mão na água, dói, tudo dói, uma bolha começa a se insinuar, enorme, bem na palma da sua mãozinha delicada (logo você, que se gabava de ter mão de cozinheira, ou “mão de amianto”, como costumo brincar — ainda não cheguei ao nível da dona Dalva, minha mamma, essa sim com mão que parece recoberta por um couro, não sente nada).

A bolha se enche de água e aquela dor incômoda atrapalha o prazer de cozinhar. Dá até um enjoo. Novamente, o mesmo processo de avaliação, como fazemos com qualquer problema que aparece na vida: vê se a queimadura não foi grave, gravíssima, vê se dá pra continuar, vê se a dor é suportável. Sim para todas as respostas? Segue o baile e vai.

Tá vendo? Cozinha é o microcosmo da vida.

E, também é nela, a cozinha, em seu espaço físico, que as pessoas se reúnem para “a alegria e a tristeza, a saúde e a doença, a riqueza e a pobreza”. Um casamento eterno. Afinal, todo mundo precisa comer, de preferência, três refeições por dia. É por isso que defendo que toda cozinha precisa ter uma mesa, mesmo que seja pequenina. A minha ainda não tem, mas terá. Prometo.

Lembro da sensação de conforto que me dava a cozinha antiga da minha mãe, na casa onde morei toda a infância. Piso vermelho, daqueles comuns nos anos 1980, cortininha embaixo da pia, nada de gabinete. Era profundamente simples. Mas tinha cheiro de lar. Até hoje, quando está frio, eu me lembro que sentava para estudar à mesa, enquanto ela passava roupa, aquele perfume morno do ferro de passar nos tecidos todos, terminando de secar, vaporizando tudo. Eu adorava.

O cheiro do café que ela passava no fim da tarde, também. Café simples, do dia a dia, nada de grão especial moído na hora e preparado na french press. Nem espressos automáticos que soltam seu aroma incrível alguns segundos depois do toque do botão. Não… Apenas o café preto, preparado à noitinha, que meu pai esquentava de manhã para tomar rapidinho, porque saía cedíssimo para trabalhar.

Também tenho a memória triste do dia em que meu avô morreu e minha prima foi me buscar na escola. Eu devia ter, sei lá, uns 6 ou 7 anos. Quando ela apareceu na porta da escola, e não minha mãe, eu tinha certeza de que algo realmente grave tinha acontecido. Mas, ela não me contou. Cheguei em casa e estava todo mundo reunido na cozinha, tinha umas balas da Pan que alguém me deu para amenizar a dor que eu ainda não estava sentindo, mas senti.

A cozinha, para mim, é feita dessas coisas, desses momentos da vida. É por isso que, quando estou triste, não consigo comer nem cozinhar, como já contei aqui. É por isso que, quando a vida vai bem, a gente quer muito fazer festas e jantares todos os dias ou receber o amor da nossa vida para tomar vinho e fazer um caldo verde ou uma massa simples, alguns petiscos na mesa, uma taça cheia, um chocolatinho para arrematar.

E olha que só agora me ocorreu o filme Ratatouille, em que o crítico gastronômico lembra da infância no momento em que prova um… ratatouille! Aparentemente, eu, o ratinho Rémy e o crítico chatão Anton Ego temos muita coisa em comum.

Ou esse prato, vai ver, tem seu poder mesmo. O poder mágico de resgatar essas profundezas dentro da gente, de fazer a gente ter vontade de reunir todo mundo sentadinho na mesa, no fim da tarde, para tomar um café e falar de futuro, de passado, de presente, do que virá. Se tiver um bolinho de fubá, amigo, aí teremos mais uma memória deliciosa pra guardar dentro da gente, e pra sempre.

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