Infância

Lu Mastrorosa
4 min readOct 8, 2020

Tenho pensado muito nestes dias sobre a criança que fui. Olhando retroativamente, acho que eu sempre gostei daquilo que era muito diferente de mim. Queria ter os cabelos pretos e outro nome. As pessoas me perguntavam “como você se chama?”, eu respondia: Katy. De onde tirei isso, não sabemos. Queria também ter os cabelos bem grossos, para fazer tranças. Adorava tranças, até hoje eu gosto.

Também gostava de comer em tigelas e travessas. No almoço de domingo, às vezes me dava na telha pegar uma travessa pequena e colocar as comidas dentro — nunca gostei de misturar tudo, cada coisa em seu lugar, assim é até hoje.

A mania de comer em tigelas continua, adoro um bowl cheio de coisinhas gostosas, especialmente arroz japonês, legumes salteados e alguma carne com molho. Ou macarrão com molho suculento de tomates e almôndegas, coberto com uma camada generosa de queijo parmesão ralado na hora. Pois aprendi, em casa, que “macarrão sem queijo é como namoro sem beijo”. Ou seja: sem graça.

Sempre tive um pendor para as artes. Adorava música, criava pequenas canções, queria ser cantora, pintora, uma artista. Não pelos holofotes, desses eu nunca gostei muito. Mas para expressar o mundinho vasto que eu já trazia dentro de mim.

Acostumada com livros e cercada por eles desde sempre, comecei a ler antes de entrar na escola, porque queria ler horóscopo e gibis e ninguém tinha paciência pra ler nada para mim. Me impacientei e pedi ao meu irmão que me ensinasse — deu certo. Foi num gibi da Mônica que comecei a entender as primeiras palavras e, daí, ganhei o mundo. Ler e escrever tornaram-se a minha forma mais querida de arte.

Lia coisas apropriadas e inapropriadas para a minha idade. Minha leitura favorita aos 13 anos era Cyrano de Bérgerac. Adorava a história trágica do homenzarrão feio, narigudo, mas com um coração gentil e amoroso, apaixonado. Ele só se deu mal, mas como eu adorava esse cara. Tenho esse livro até hoje, escrito em formato de diálogos, um roteiro teatral.

Paulo Coelho e suas histórias cheias de magos e bruxas e autodescobertas foi meu Harry Potter da adolescência. Muito do meu desejo em conhecer alguns lugares da Europa vieram daí, aquele sonho de ver castelos, casas de pedra, bosques de outras cores, luzes diferentes, entardeceres com outros tons de laranja, rosa e azul.

Quando pisei o pé no Velho Mundo pela primeira vez, além do choque de só ouvir gente falando em outro idioma (me bateu um certo pânico, pois meu francês era bem parco naquela época), o que mais me chamou a atenção foi a luz de Paris. A luz que ficava até tarde, pois era primavera, a luz que alcançava as 10 horas da noite. Era uma luz diferente do nosso brilho vibrante brasileiro. Até hoje, lembro desse primeiro dia e sinto um orgulho bobo daquela criança que sonhava em fazer tantas coisas, e as fez, e as faz.

Inevitável também pensar na minha filha, que acabou de completar 6 anos. Olho para ela e me encontro, pequenina, dentro do seu olhar, no modo de dizer as coisas, na pele clara, no desejo de desbravar o mundo, mesmo com medo. Ela vai, ela enfrenta, mesmo com medo. Acho isso bonito e mágico e acompanhar sua infância me faz lembrar da minha própria infância e de como me desenvolvi enormemente de lá para cá. Uma gigante dentro de um corpo pequeno e magro. Mas, ainda assim, uma gigante, de coração generoso, como o meu amado Cyrano.

Mas, de vez em quando, a minha criança interior ainda chora e se sente sozinha, ainda sente que precisa de um colo onde se aninhar, de alguém que lhe passe a mão nos cabelos finos e lhe diga que vai ficar tudo bem. Antes, eu achava que encontraria isso no outro, no parceiro, na mãe, no amor. Hoje, finalmente, compreendi que esse colo eu mesma posso me dar.

E, diante das situações mais difíceis, das encruzilhadas, das divididas, dos sofrimentos, quando a minha criança interna chora, eu tenho tido cada vez mais força e luz pra dizer a ela: “calma, vai ficar tudo bem”.

Nessas horas, eu lavo os cabelos, seco os cabelos, tranço meus próprios cabelos, coloco uma meia fofa (se estiver frio), me enrolo nas cobertas e fico a me ninar, como um bebê, ou uma criança pequena, cantando musiquinhas para mim.

Demorou um bom par de anos para entender o conceito de “amor próprio”. Porque eu sempre pensava: mas é lógico que eu me amo! Como eu poderia não me amar? Só que, processos e terapias e tapas na cara depois, percebi que às vezes a gente pode cair no erro de “amar” mais ao outro do que a si mesma. É paradoxal e, ainda, algo revelador para mim.

Porém, hoje, quando minha criança interna chora, eu lembro dessas coisas que aprendi e tento dar a ela, com muita gentileza, aquilo que ela espera de mim. Conforto, atenção, carinho, acolhimento, uma xícara de chá, a voz de um amigo ao telefone, o meu gatinho ronronando nas minhas pernas, o céu azul lá em cima, cheio de pássaros voando longe, uma nesga de sol que entra pela janela, as ervinhas que cultivo para os chás e as comidas, o cheiro de um perfume que me lembra um outro tempo, um outro lugar.

Minha mente divaga e lembro da criancinha loira e mirrada que fui, tentando pedalar a bicicletinha da vizinha, caindo na rua ao ganhar minha bicicleta vermelha (e morrendo de vergonha), andando nessa mesma bike com meu pai, na rua, aos domingos, porque meus pais tinham medo de me deixar andar sozinha.

Hoje eu ando sozinha. Por várias ruas, países e lugares. Trafego em vários idiomas, com gentes de todos os tipos, cores, vozes, sons. A bicicleta vermelha ficou pequena. A bicicleta preta eu deixei na rua ontem para alguém levar. Os carros que tive se foram. Mas o leme da minha própria vida, o guidão, o volante, estão aqui, dentro de mim, a me guiar pelos caminhos certos ou tortuosos.

Com a certeza de que, apesar de tudo, das mágoas, das decepções e das trapaças, a minha menininha interna, enfim, tem agora mais motivos para sorrir e não mais chorar, nunca mais chorar. Só se for de alegria.

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