Da construção de memórias (felizes)

Lu Mastrorosa
4 min readFeb 21, 2021

Passou o Carnaval. Terça-feira “gorda” do ano passado foi delicada para mim. Estava de plantão e uma situação ruim aconteceu. Passei o dia perturbada e triste. Daí que essa terça-feira de Carnaval de 2020, pré-pandemia, já foi o marco, para mim, da ruína que viria. E veio, com toda a sua força e esplendor de tsunami. Considero, mesmo, que sou uma heroína por ter sobrevivido (quase) intacta. Parabéns pra mim. Parabéns pra nós, sim. Nós, que aqui estamos, ainda.

Voltando a fevereiro de 2020. A pandemia estava batendo à nossa porta. Ainda assim, demorou um tempo para cair a ficha de que o mundo nunca mais voltaria a ser o mesmo. O NOSSO mundo. O mundo de gente como eu, que temia a bomba H nos anos 1980 e que viu, sem entender muita coisa, mas com emoção, a queda do muro de Berlim. Que assistiu à guerra do Golfo pela TV e viu a derrocada do Collor, depois de enfrentar filas, junto com a mãe, para comprar um quilo de carne, se muito, na era Sarney. Magina o preço do iogurte? Jesuis! E hoje eu nem ligo pra iogurte. As coisas mudam.

Se você está na faixa dos 20 anos, mal conhece Fábio Junior, quiçá isso tudo que estou falando. Como dizia o ET Bilu, “busquem conhecimento”. Ah, você não sabe quem foi, ou é, ET Bilu? Busque conhecimento! Ou ainda, como diria mestre Gil, “procure se informar”.

A internet nossa de cada dia está aí para isso. E eu nasci numa era pré-internet. Mas, fato é que a pandemia nos atingiu a todos, independentemente da idade, lugar, situação, status, grana. E mudou nossas vidas para sempre, quer queira, quer não.

E, agora, com a vacina já sendo aplicada, a gente volta a pensar sobre outras coisas. Como o desenrolar da vida, e não apenas “sobreviver”, por exemplo.

De repente, me peguei de folga na segunda de Carnaval. Mas, em 2021, não houve Carnaval. Eu nunca saí em bloco, mas curtia a energia da coisa. Então, pensei, posso me deprimir com as memórias do odioso Carnaval passado ou… posso criar novas memórias!

Bum! Parecia uma bomba explodindo em mim. Posso criar memórias novas, novinhas, novinhas em folha! E foi exatamente isso que fiz.

Como estava de folga, mas era dia “comum”, decidi desafiar ligeiramente a ordem e fazer um churrasco só para mim e para a filhota. Compramos carnes, legumes, carvão; a churrasqueira, combalida, me lembrou que a duração da nossa vida aqui no Ipiranga estava chegando ao fim: durou exatos três anos. E tudo bem. Tudo bem… “Tudo bem” virou o meu mantra pessoal.

Fomos bem felizes nesse dia, segunda de folga. Na terça de Carnaval, trabalhei. E tudo bem. Na quarta de Cinzas, decidi coisas importantes e me desesperei um pouco. Tudo bem. Na quinta e na sexta, a vida seguiu seu ritmo quase normal. Tudo bem. Na sexta à noite, sábado e domingo, novas chances de ser feliz com pouco. Me agarrei a isso como se fosse um novo sol. E TUDO BEM.

Hoje, domingo, dormimos na sala. Ela, a filhota, queria uma festa do pijama. Banho tomado, falei pra ela colocar seu pijama mais bonito. O meu era uma camisola feia com um ursinho estampado, que presenciara momentos delicados, para não dizer HORRÍVEIS. Pensei: “hmm, preciso de uma camisola nova; um pijama bonito de algodão purinho, como aqueles dos filmes, cheios de listrinhas”. Só tinha a malfadada camisola de urisinho feia. Tá TUDO BEM.

Comemos um jantar tex-mex que eu fiz. Tinha salgadinhos de milho crocantes, sim. Ela ficou feliz demais porque desci o colchão de solteiro, de sua caminha, para a sala. Enfiei um monte de colchas, lençóis, travesseiros. Vimos o Garfield na TV, usando um app do meu celular. Bendita tecnologia!

Pensei, sozinha: “mas, nossa, que visual antiiiiigo desse John — o dono, ou tutor, do Garfield — não?”. Chequei: o primeiro filme era de 2004. O segundo, de 2006. Tempo, tempo, tempo, tempo. Cronos, meu bem, esse senhor implacável. Saturno e suas jogadinhas. Faz piada aí, Saturno. Tá TUDO BEM.

Como disse, dormimos na sala. A alegria dela por ter uma aventura em sua própria casa: impagável. Acordei, porém, 5 horas da manhã. Com um pouco de frio. Só eu. Via, devagar, as primeiras luzes do dia. Pensei em dormir mais um pouco. Peguei o edredon pesado no quarto, escada acima, e nada. Nada do sono vir.

Aproveitei para pensar (rezar? meditar?) até 7 horas da manhã, quando ela e o gato abriram os olhos e deram bom-dia. Decidimos que o almoço seria lasanha, por causa do Garfield. Mostrei a ela um livro desse gato gordo que eu preservo desde, sei lá, meus 11 anos. Incentivei que começasse a ler, assim ela teria todo um mundo de histórias novas à sua disposição.

“E é assim”, pensei comigo mesma, enquanto pedia 300 gramas de muçarela e 300 gramas de presunto, fatiados ‘bem fininho’, na padaria, para a lasanha. Que eu faço com molho bolonhesa e esses frios, sim. Porque gosto. E tem um segredinho que só conto para quem perguntar.

“É assim que a gente constrói memórias novas, muito mais bonitas, e deixa para trás o que já foi”, pensei, de novo. Abri um sorrisão e um livro antigo, que amo. Sentei no sofá. Tomamos café no colchão disposto bem no meio da sala, com uma bandeja transparente, de plástico, que eu quaaase joguei fora outro dia. Ainda bem que não joguei. Café da manhã ótimo!

E é assim. Construindo lembranças e momentos, seguimos. Estou ansiosa pelo outono. E pela Páscoa. Dias melhores virão. E, se não vierem, a gente molda as memórias mesmo assim, com muito, muito pouco. E tá tudo bem.

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